quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

África 1914-1918. A Grande Guerra esquecida

Como já foi referido aqui, embora a Alemanha só tivesse declarado guerra a Portugal em Fevereiro de 1916,em reação ao apresamento dos navios alemães nos portos portugueses, e o Corpo Expedicionário Português só tenha marchado para as trincheiras do norte de França e da Bélgica um ano depois, o nosso país já tinha entrado na Grande Guerra logo em 1914. 

É certo que, curiosamente, esta faceta da participação portuguesa na Guerra não é tão mediatizada ou estudada como a saga do CEP na Flandres, mas o exército português já combatia em 1914, de facto e com muito sangue suor e lágrimas, na frente africana. Em rigor, em várias frentes africanas, travando batalhas com tropas germânicas junto às fronteiras de Moçambique e Angola, onde o Império do Kaiser detinha as suas possessões coloniais (o Tanganica e o Sudoeste Africano Alemão). Foi no palco africano, aliás, que se registou a maioria das baixas nas tropas portuguesas no contexto da I Guerra Mundial - de cerca de dez mil mortos militares portugueses estimados, "apenas" cerca de um quarto terá tombado nos campos europeus. Isto é, também aqui os alemães esmagaram as forças portuguesas. Em África e na Europa, verificamos outra constante: a impreparação portuguesa, quer para doenças quer para a guerra.

No entanto, como em 1961, também em 1914 fomos rapidamente e em força para as principais colónias. Em Setembro de 1914, na sequência de um "raid" alemão a um posto fronteiriço no norte de Moçambique, partiu de Lisboa o primeiro contingente especial de 1527 soldados (grande parte deles vítimas pouco tempo depois por viroses tropicais). Em Outubro, seguiu para Angola uma segunda força expedicionária, sob o comando de Alves Roçadas (mais tarde general e último comandante do CEP no palco Europeu), com 1600 homens. O garboso Roçadas foi clamorosamente derrotado por uma força alemã numericamente inferior em dezembro de 1914 e teve logo depois que conter a revolta da população autóctone, galvanizada pelo desaire português.

Embarque de tropas para Angola (1914)


Em Moçambique o cenário não foi mais animador e, além das doenças e das sublevações dos locais, o exército português ia-se arrastando numa campanha dolorosa:


«Em Novembro de 1915 chegou a Moçambique uma nova força de 1543 homens, comandados por Moura Mendes. Essa 2ª força tinha como finalidade recuperar a ilha de Quionga, mas também devido a desorganização idêntica à da primeira força, só em 4 meses perdeu, por doença, metade dos efectivos. Só em Abril de 1916 a pequena ilha de Quionga foi recuperada.
Em finais de Junho de 1916 chega a Moçambique a 3ª força enviada de Portugal, constituída por 4642 homens comandados por Ferreira Gil, com a finalidade de passar o Rovuma e atacar as tropas alemães ao mesmo tempo que estas eram atacadas no Tanganica por forças inglesas, da Rodésia, da União Sul-Africana, do Quénia, do Congo Belga e da Índia. Esta 3ª força consegue passar o Rovuma e conquistar Nevala mas, logo de seguida, é derrotada no combate de Nevala, tendo que retirar novamente para Moçambique.
Em 1917 Portugal envia a 4ª força para Moçambique, esta constituída por 9786 homens e comandada por Sousa Rosa.
A Alemanha tinha na África Oriental, uma pequena força de 4000 askaris e 305 oficiais europeus, comandados pelo general Lettow Worbeck.
Este general alemão conseguiu sempre resistir aos ataques das forças inglesas, apesar de estas serem em número muito superior. Isto só foi possível devido a este general ter utilizado uma nova forma de guerra (guerrilha), não lhe interessando manter ou conquistar posições, mas sim manter o inimigo sempre ocupado, de modo que este não pudesse libertar soldados para enviar de volta à Europa.
Em Novembro de 1917, Lettow Worbeck passa o Rovuma e derrota as tropas portuguesas em Negomano, e percorre Moçambique sempre fugindo e derrotando as tropas (inglesas e portuguesas) que encontrava pelo caminho e provocando a revolta das populações locais contra os portugueses. Este general alemão acabou por voltar ao Tanganica.
Com o final da guerra na Europa, o exército alemão que se encontrava nessa altura na Rodésia, acabou por se render apesar de nunca ter sido derrotado.
Para Portugal ficaram, além das grandes derrotas militares, as revoltas das populações locais, que demoraram a ser reprimidas.» (fonte)

Como vimos, o envolvimento bélico português na Grande Guerra começou cedo e também começou mal. E como diz o povo, o que nasce mal... Seja como for, embora seja pouco ou nada gloriosa, é uma parte da história que merece ser mais e melhor contada. Uma das poucas obras de referência sobre este tema é «A Primeira Grande Guerra na África Portuguesa - Angola e Moçambique (1914-1918)» (Edição Cosmos/Instituto da Defesa Nacional, Janeiro de 2005), do historiador militar, Marco Fortunato Arrifes.


Infelizmente já não se encontra no circuito comercial, mas é possível encontrá-lo na generalidade das boas bibliotecas, sobretudo universitárias (ou talvez esteja ainda disponível aqui). Sobre este livro, permitimo-nos reproduzir um excerto de um artigo do historiador francês René Pélissier, autor que se tem debruçado particularmente sobre a história colonial e militar portuguesa. O artigo intitula-se "Sobreviver num mar de tinta", debruça-se sobre várias publicações da altura, uma delas a de Marco Arrifes, que merece o devido elogio e serve de pretexto para o historiador gaulês discorrer acerca desta guerra semi-esquecida:


«(...) Regressemos a um tema essencialmente lusófono com "A Primeira Grande Guerra na África Portuguesa", da autoria de um historiador oficial do Exército. O tema é um dos mais mal tratados pela historiografia portuguesa e, no entanto — caso único —, ao enviar dezenas de milhares de soldados metropolitanos para a África em 1914-1918, Portugal inverteu o movimento que mobilizou as tropas coloniais e imperiais no sentido de estas virem defender as metrópoles. Esta singularidade devia chamar a atenção dos historiadores estrangeiros especialistas da primeira Grande Guerra. Mas, como geralmente ignoram — salvo recentes excepções — o que fazia Portugal em Angola e em Moçambique, eles mantém um prudente silêncio sobre este assunto. Isto quer dizer que, se lessem este livro — caso dominassem a língua portuguesa —, poderiam, enfim, ter uma ideia clara das operações militares portuguesas nas suas ex-colónias? Não, no caso de Angola. Não, pois o autor não procura dar uma relação pormenorizada das actividades bélicas no terreno. O que lhe interessa são o contexto político, as infra-estruturas, a organização da máquina militar e, o que é completamente inovador, a vida quotidiana dos soldados, o soldo, a sexualidade, a logística, as relações entre soldados africanos e europeus. Tudo isto é útil e interessante, mas um leitor profano que goste de saber o que se passou na batalha de Môngua — a maior vitória (1915) dos portugueses em África — terá de procurar noutro sítio, nomeadamente no relatório oficial publicado, ou de recorrer aos testemunhos de participantes. Ou talvez, porque mais acessível, à obra de René Pélissier Les campagnes coloniales du Portugal (1844-1941), Edições Pygmalion/Flammarion, Paris, 2004.
Em compensação, Marco Fortunato Arrifes empregou muita energia a tentar encontrar estatísticas fiáveis sobre os efectivos e as perdas portugueses. Existe uma tal quantidade de números contraditórios que o leitor tem de resignar-se com aproximações — como para a guerra de 1961 a 1974 — quanto aos efectivos metropolitanos verdadeiramente enviados para a África (de 30 000 a 31 600, mais ou menos, entre 1914 e 1918). Trata-se de um esforço importante para um país como Portugal durante a primeira Grande Guerra. A bibliografia fornecida contém algumas entradas raras, mas não retoma integralmente as entradas indicadas nas notas. Em resumo, um trabalho original, sério, sem exageros nacionalistas. Falta aprofundar questões importantes, mas é já um grande passo em frente.
Outros tempos, outros hábitos. O que é certo é que os soldados de 1914-1918 não regressaram em peregrinação organizada, nos anos 1930-1950, aos locais das suas actividades africanas.
Ora, assistimos, desde há uns anos para cá, a uma espécie de turismo sentimental relativamente à Guiné e a Moçambique. Nada em relação a Angola? Antigos combatentes viajam, em grupo, na direcção da sua juventude, dos seus medos, dos seus sofrimentos, das guarnições abandonadas há mais de trinta anos. (...)», in Revista Análise Social, vol. XL (177), 2005, 925-945 (artigo integral, fonte).

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