sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A maior catástrofe que o mundo já viu e a questão da culpa. Quem foi responsável pela guerra? Um texto importante. Novos livros.

«June 28, 1914, Sarajevo, Bosnia. The Archduke Franz Ferdinand, heir to the multinational Habsburg realms, resplendent in the dress uniform of an Austrian cavalry general, but also absurd in his plumed headdress, was shot at close range by Gavrilo Princip, a local student dropout obsessed with the Serbian national cause. Sarajevo was one of history’s most purple passages: there was the drama of bungled security and hamfisted conspiracy; spectacle and gore; the play of intention and chance; the clash of generations and civilizations, of the old monarchical Europe and the modern terrorist cell. 

But of course the Sarajevo assassination captivates posterity for its consequences. Piqued in its prestige and fearful of the threat to its status as a great power by subversion fanned from Serbia, the Austro-Hungarian government delivered an ultimatum to its obstreperous little Balkan neighbor, demanding a say in the management of its internal affairs. 

Russia stepped in to protect its Serbian clients; the Germans supported their Austrian allies; the French marched to fulfill their treaty obligations to Russia; Great Britain honored its commitment to come to the aid of France. Within five weeks a great war had broken out. At the very least, this is a gripping tale. Sean McMeekin’s chronicle of these weeks in July 1914: Countdown to War is almost impossible to put down.

Thus was unleashed the calamitous conflict that, more than any other series of events, has shaped the world ever since; without it we can doubt that communism would have taken hold in Russia, fascism in Italy, and Nazism in Germany, or that global empires would have disintegrated so rapidly and so chaotically. A century on we still search for its causes, and very often, if possible, for people to blame. In the immediate aftermath of war that seemed clear to many: Germany, and especially its leaders, had been responsible; the Austrians too, as accomplices, in lesser degree. The Treaty of Versailles made this official, as the victorious powers there spoke of a “war imposed upon them by the aggression of Germany and her allies.” This was the notorious guilt clause used to justify severe “reparation” payments stretching far into the future. It was a widespread view, and ordinary Germans might have shared it if the vanquishers had not gone for the premise of collective responsibility, which undermined attempts to build a fresh German regime untainted by the past. (...).»

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

"A I Guerra Mundial seria hoje impossível na Europa" - Globo - DN

«Para compreender a Primeira Guerra Mundial é preciso entrecruzar três tempos: o tempo longo das rivalidades entre as grandes potências desde há muitas décadas na Europa, o tempo médio das tensões entre o início do século e 1914 (crise bosníaca, crises marroquinas, guerras nos Balcãs...) e a corrida às armas associadas àquelas e o tempo curto da crise do verão de 1914. É o conjunto destes três tempos que permite entender o conflito.(...)». Continua aqui: "A I Guerra Mundial seria hoje impossível na Europa" - Globo - DN

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

De noite é que é o inferno...

«De noite é que é o inferno. Ou se vai de patrulha, de gatas, de moca e bomba, caindo aqui, levantando-se acolá, ou se espera que sejam eles que venham encostar-nos o frio gume da baioneta à gorja, preparando-se nesse caso tudo para a recepção. Mas se é gás e se são tiros, uma trabuzanada de acordar os mortos, logo começa um chinfrim diabólico de latas e campainhas para que a gente se mascare. E os telefones retinem, os estafetas põem-se a andar e o SOS sobe ao céu, no vinco luminoso dos very-lights que ficam iluminando a terra toda até que se apagam e o mundo é apenas escuridão. À artilharia de lá responde a nossa, e ao longe, há por vezes a sanguinolenta mancha dos incêndios. Ouve-se o crac-crac das metralhadoras que o boche despeja e que nós despejamos. E transida, bafejando as mãos, sem sono, a gente escuta os ecos e o nosso coração doente é como um velho relógio tonto oscilando entre a saudade dos que estão longe e a ideia de morrer ali, armado e equipado, sonolento e triste, como um cão sem forças», Albino Forjaz Sampaio, oficial português na Flandres, citado na obra "Das Trincheiras com Saudade", de Isabel Pestana Marques (Esfera dos Livros, 2008)

A Primeira Guerra Mundial. Uma conferência em Lisboa

«O que foi a Primeira Guerra Mundial, quais as suas causas e como foi vivida pelos milhões de pessoas que, diretamente nas trincheiras, ou na retaguarda foram afetadas, é o tema amanhã em discussão no Instituto Francês em Portugal, em Lisboa, a partir das 19.00. Participam o antigo ministro e professor Nuno Severiano Teixeira e o académico e investigador francês Nicolas Offenstadt. 

A iniciativa insere-se num programa mais vasto de iniciativas que visam assinalar os cem anos do início da Primeira Guerra Mundial (28 julho de 1914-11 de novembro de 1918) e traz a Lisboa um dos mais relevantes investigadores franceses do tema, Nicolas Offenstadt, que publicou recentemente "La Grande Guerra. Le Carnet du Centenaire".(...)». Continua aqui: Revisitar a Primeira Guerra Mundial - Globo - DN

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

"Quem vive?". A Grande Guerra em Moçambique. Diários de campanha

"Kináni (Quem vive?)? Crónica de Guerra no Norte de Moçambique, 1917-1918", Cardoso Mirão, Lisboa, Livros Horizonte, 2001

Esta é a narrativa da campanha da I Guerra Mundial em Moçambique, pela voz de Cardoso Mirão, aí 2º sargento das forças portuguesas. Esta é uma parte da história muito pouco conhecida, tanto no diz respeito à participação portuguesa na I Guerra, muito centrada no palco europeu, como na formulação da ocupação colonial, então ainda muito incipiente em vastas zonas de Moçambique e inexistente noutras.


O livro é apaixonante, a descrição de uma campanha desorientada, que em pouco mais se traduziu do que numa longa e terrível caminhada pelo norte do país, e neste caso com quase inexistência de combates.

Trata-se de uma caminhada louca, ecoa-se o sofrimento inadjectivável de uma tropa errante, descomandada, desinformada, gradualmente desnorteada e logo desmoralizada. Sofrendo a inexistência de logística e a inadequação dos equipamentos (algo que este auto-retrato explicita). E tudo isto potenciado pela constante agressão da Natureza, os predadores, uma terrível fome, uma permanente sede e, acima de tudo, as doenças.

É comovente, ainda hoje, ler os lamentos do sargento sobre a situação das suas botas, faltando-lhe ainda meses de infindáveis caminhadas.

Como pano de fundo de toda essa situação, mas realmente apenas como pano de fundo, o opressivo temor do confronto com o corpo expedicionário alemão, uma pequena força de grande gabarito, comandada por um oficial verdadeiramente lendário, o o general Lettow-Vorbeck, a cuja se encontrava em constante movimento via Tanganyka, e que nunca veio a ser vencida.

Para quem conhece a zona (e eu tive o acaso nada fortuito de ler o livro durante uma estadia no Niassa, amplamente referenciado) pode tentar imaginar a dureza desta campanha.

É um grande livro sobre guerra, praticamente sem combates. Nele respira um antigo exército, de uma crueldade hierárquica extrema, que se julgaria apenas de Antigo Regime, no qual oficiais e soldados eram ainda de dois mundos, de duas ordens. E ainda os africanos, arregimentados como carregadores, escondidos num terceiro mundo.

Será interessante notar que tanto em Cabo Delgado como no Niassa há ainda a memória camponesa desta guerra dos "ma-germanes", difusamente datada numa época correspondente à real II Guerra Mundial. Efeitos da história local sobre a devastação provocada pela mobilização de milhares de carregadores, e sua extrema mortalidade, pelas forças em presença, alemãs, inglesas e portuguesas.

É pois um retrato espantoso. Da guerra e da sociedade que nela participava. Mas também uma visão especial de África. Não esta como a Ameaça, o Horror (a la Conrad). Mas mais como o palco desse Horror, um horror interno.

Um livro único no memorialismo português. E, mais uma vez, uma pergunta, como não filmar uma história destas?

Recensão de José Flávio Pimentel Teixeira (link) publicada com autorização do autor

domingo, 26 de janeiro de 2014

A I Guerra no Público. Um dossier imperdível

O jornal Público presenteia-nos, na edição de hoje, com um excelente dossier especial de oito páginas, sobre Portugal e a I Grande Guerra, de que daremos eco mais detalhado a seu tempo. Para já, vale a pena ler o artigo principal de Jorge Almeida Fernandes:

«Quando a Europa comemorou em 1994 os 80 anos da eclosão da Grande Guerra de 1914-18, fê-lo num estado de espírito muito particular — o da despedida do trágico século XX. Com o fim da União Soviética, encerrava-se uma era. A construção europeia acelerava-se e a UE preparava a integração do Leste, reunificando o Continente. Dominava a pax americana. Fukuyama publicava O Fim da História. Admitia-se uma “globalização feliz”. Apenas o regresso da palavra Sarajevo e a irrupção dos nacionalismos trazia alguma perturbação. Mas, sobretudo, tiravam-se as lições do “suicídio” de 1914 — um facto já muito distante. (...)». Continua aqui: Que podemos aprender hoje com a Europa de 1914? - PÚBLICO

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

África 1914-1918. A Grande Guerra esquecida

Como já foi referido aqui, embora a Alemanha só tivesse declarado guerra a Portugal em Fevereiro de 1916,em reação ao apresamento dos navios alemães nos portos portugueses, e o Corpo Expedicionário Português só tenha marchado para as trincheiras do norte de França e da Bélgica um ano depois, o nosso país já tinha entrado na Grande Guerra logo em 1914. 

É certo que, curiosamente, esta faceta da participação portuguesa na Guerra não é tão mediatizada ou estudada como a saga do CEP na Flandres, mas o exército português já combatia em 1914, de facto e com muito sangue suor e lágrimas, na frente africana. Em rigor, em várias frentes africanas, travando batalhas com tropas germânicas junto às fronteiras de Moçambique e Angola, onde o Império do Kaiser detinha as suas possessões coloniais (o Tanganica e o Sudoeste Africano Alemão). Foi no palco africano, aliás, que se registou a maioria das baixas nas tropas portuguesas no contexto da I Guerra Mundial - de cerca de dez mil mortos militares portugueses estimados, "apenas" cerca de um quarto terá tombado nos campos europeus. Isto é, também aqui os alemães esmagaram as forças portuguesas. Em África e na Europa, verificamos outra constante: a impreparação portuguesa, quer para doenças quer para a guerra.

No entanto, como em 1961, também em 1914 fomos rapidamente e em força para as principais colónias. Em Setembro de 1914, na sequência de um "raid" alemão a um posto fronteiriço no norte de Moçambique, partiu de Lisboa o primeiro contingente especial de 1527 soldados (grande parte deles vítimas pouco tempo depois por viroses tropicais). Em Outubro, seguiu para Angola uma segunda força expedicionária, sob o comando de Alves Roçadas (mais tarde general e último comandante do CEP no palco Europeu), com 1600 homens. O garboso Roçadas foi clamorosamente derrotado por uma força alemã numericamente inferior em dezembro de 1914 e teve logo depois que conter a revolta da população autóctone, galvanizada pelo desaire português.

Embarque de tropas para Angola (1914)


Em Moçambique o cenário não foi mais animador e, além das doenças e das sublevações dos locais, o exército português ia-se arrastando numa campanha dolorosa:


«Em Novembro de 1915 chegou a Moçambique uma nova força de 1543 homens, comandados por Moura Mendes. Essa 2ª força tinha como finalidade recuperar a ilha de Quionga, mas também devido a desorganização idêntica à da primeira força, só em 4 meses perdeu, por doença, metade dos efectivos. Só em Abril de 1916 a pequena ilha de Quionga foi recuperada.
Em finais de Junho de 1916 chega a Moçambique a 3ª força enviada de Portugal, constituída por 4642 homens comandados por Ferreira Gil, com a finalidade de passar o Rovuma e atacar as tropas alemães ao mesmo tempo que estas eram atacadas no Tanganica por forças inglesas, da Rodésia, da União Sul-Africana, do Quénia, do Congo Belga e da Índia. Esta 3ª força consegue passar o Rovuma e conquistar Nevala mas, logo de seguida, é derrotada no combate de Nevala, tendo que retirar novamente para Moçambique.
Em 1917 Portugal envia a 4ª força para Moçambique, esta constituída por 9786 homens e comandada por Sousa Rosa.
A Alemanha tinha na África Oriental, uma pequena força de 4000 askaris e 305 oficiais europeus, comandados pelo general Lettow Worbeck.
Este general alemão conseguiu sempre resistir aos ataques das forças inglesas, apesar de estas serem em número muito superior. Isto só foi possível devido a este general ter utilizado uma nova forma de guerra (guerrilha), não lhe interessando manter ou conquistar posições, mas sim manter o inimigo sempre ocupado, de modo que este não pudesse libertar soldados para enviar de volta à Europa.
Em Novembro de 1917, Lettow Worbeck passa o Rovuma e derrota as tropas portuguesas em Negomano, e percorre Moçambique sempre fugindo e derrotando as tropas (inglesas e portuguesas) que encontrava pelo caminho e provocando a revolta das populações locais contra os portugueses. Este general alemão acabou por voltar ao Tanganica.
Com o final da guerra na Europa, o exército alemão que se encontrava nessa altura na Rodésia, acabou por se render apesar de nunca ter sido derrotado.
Para Portugal ficaram, além das grandes derrotas militares, as revoltas das populações locais, que demoraram a ser reprimidas.» (fonte)

Como vimos, o envolvimento bélico português na Grande Guerra começou cedo e também começou mal. E como diz o povo, o que nasce mal... Seja como for, embora seja pouco ou nada gloriosa, é uma parte da história que merece ser mais e melhor contada. Uma das poucas obras de referência sobre este tema é «A Primeira Grande Guerra na África Portuguesa - Angola e Moçambique (1914-1918)» (Edição Cosmos/Instituto da Defesa Nacional, Janeiro de 2005), do historiador militar, Marco Fortunato Arrifes.


Infelizmente já não se encontra no circuito comercial, mas é possível encontrá-lo na generalidade das boas bibliotecas, sobretudo universitárias (ou talvez esteja ainda disponível aqui). Sobre este livro, permitimo-nos reproduzir um excerto de um artigo do historiador francês René Pélissier, autor que se tem debruçado particularmente sobre a história colonial e militar portuguesa. O artigo intitula-se "Sobreviver num mar de tinta", debruça-se sobre várias publicações da altura, uma delas a de Marco Arrifes, que merece o devido elogio e serve de pretexto para o historiador gaulês discorrer acerca desta guerra semi-esquecida:


«(...) Regressemos a um tema essencialmente lusófono com "A Primeira Grande Guerra na África Portuguesa", da autoria de um historiador oficial do Exército. O tema é um dos mais mal tratados pela historiografia portuguesa e, no entanto — caso único —, ao enviar dezenas de milhares de soldados metropolitanos para a África em 1914-1918, Portugal inverteu o movimento que mobilizou as tropas coloniais e imperiais no sentido de estas virem defender as metrópoles. Esta singularidade devia chamar a atenção dos historiadores estrangeiros especialistas da primeira Grande Guerra. Mas, como geralmente ignoram — salvo recentes excepções — o que fazia Portugal em Angola e em Moçambique, eles mantém um prudente silêncio sobre este assunto. Isto quer dizer que, se lessem este livro — caso dominassem a língua portuguesa —, poderiam, enfim, ter uma ideia clara das operações militares portuguesas nas suas ex-colónias? Não, no caso de Angola. Não, pois o autor não procura dar uma relação pormenorizada das actividades bélicas no terreno. O que lhe interessa são o contexto político, as infra-estruturas, a organização da máquina militar e, o que é completamente inovador, a vida quotidiana dos soldados, o soldo, a sexualidade, a logística, as relações entre soldados africanos e europeus. Tudo isto é útil e interessante, mas um leitor profano que goste de saber o que se passou na batalha de Môngua — a maior vitória (1915) dos portugueses em África — terá de procurar noutro sítio, nomeadamente no relatório oficial publicado, ou de recorrer aos testemunhos de participantes. Ou talvez, porque mais acessível, à obra de René Pélissier Les campagnes coloniales du Portugal (1844-1941), Edições Pygmalion/Flammarion, Paris, 2004.
Em compensação, Marco Fortunato Arrifes empregou muita energia a tentar encontrar estatísticas fiáveis sobre os efectivos e as perdas portugueses. Existe uma tal quantidade de números contraditórios que o leitor tem de resignar-se com aproximações — como para a guerra de 1961 a 1974 — quanto aos efectivos metropolitanos verdadeiramente enviados para a África (de 30 000 a 31 600, mais ou menos, entre 1914 e 1918). Trata-se de um esforço importante para um país como Portugal durante a primeira Grande Guerra. A bibliografia fornecida contém algumas entradas raras, mas não retoma integralmente as entradas indicadas nas notas. Em resumo, um trabalho original, sério, sem exageros nacionalistas. Falta aprofundar questões importantes, mas é já um grande passo em frente.
Outros tempos, outros hábitos. O que é certo é que os soldados de 1914-1918 não regressaram em peregrinação organizada, nos anos 1930-1950, aos locais das suas actividades africanas.
Ora, assistimos, desde há uns anos para cá, a uma espécie de turismo sentimental relativamente à Guiné e a Moçambique. Nada em relação a Angola? Antigos combatentes viajam, em grupo, na direcção da sua juventude, dos seus medos, dos seus sofrimentos, das guarnições abandonadas há mais de trinta anos. (...)», in Revista Análise Social, vol. XL (177), 2005, 925-945 (artigo integral, fonte).

China e Japão. Lições da História

Abe diz que Japão e China devem evitar erros de alemães e britânicos na 1ª Guerra | Mundo | Reuters

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

La Lys, ícone do desastre. Perspetivas críticas.

A Batalha de La Lys é, de todas as que marcaram a I Guerra Mundial, a que ficou mais profundamente gravada no imaginário português. No anterior post falou-se por alto de incompetência, e La Lys (designação do ribeiro belga perto do qual decorreu o confronto entre as divisões luso-britânicas e as tropas germânicas), embora não seja assim tão líquida a importância da incompetência para o desfecho trágico, é também um ícone da impreparação e ineficiência, quer do poder político em Lisboa, quer do Corpo Expedicionário Português (CEP), assolado já por doenças, deserções, falta de comando e um ambiente geral de grande desmoralização. 

Na madrugada do dia 9 de Abril de 1918, os alemães atacaram massivamente as posições portuguesas, chefiadas pelo General Gomes da Costa (com cerca de quinze mil soldados minimamente operacionais nas primeiras linhas), que foram rapidamente cilindradas pelo poderio vastamente superior do inimigo: «55 000 soldados do VI Exército alemão, agrupados em oito divisões sob o comando do general Ferdinand von Quast (1850-1934) atacaram, seguindo o plano da ofensiva que Erich Ludendorff concebeu com o objectivo de tomar Calais e Boulogne-sur-Mer» (fonte)

Prisioneiros portugueses do CEP num campo alemão, logo após a derrota de La Lys (imagem do Arquivo Federal Alemão, fonte)


A Wikipedia diz que esta batalha constituiu «a maior catástrofe militar portuguesa depois da batalha de Alcácer-Quibir, em 1578» e não andará longe da verdade. O rescaldo da batalha registou do lado português cerca de 7500 baixas, entre mortos (cerca de mil, mais de 300 oficiais), feridos e prisioneiros*. Embora haja quem prefira destacar que as tropas portuguesas conseguiram resistir 24 horas ao assalto alemão, é inapelável que a derrota foi clamorosa e que só se salvou a heroicidade do Soldado Milhões. É certo e justo destacar, mesmo assim, que o desaíre português teve atenuantes, desde logo a inferioridade numérica e de capacidade de fogo avassaladora. Mas mesmo quem o realce, não esconde as fragilidades:


«(...) As tropas estavam em França, mas a desmoralização era enorme. O número de oficiais que se encontravam nas duas divisões portuguesas estava muito abaixo do minimo necessário. As tropas portuguesas estavam desenquadradas, e faltavam-lhes oficiais para enquadrar as tropas e comanda-las convenientemente. O conceito de carne para canhão, em que se enviam homens uns contra os outros, ainda era normalmente aceite.

Mas a baixa política e a irresponsabilidade dos políticos da Primeira República , não deixou de ensombrar as tropas. Depois de se enviar o CEP, não se sabia exactamente o que fazer com ele. Além disso, Portugal não tinha dinheiro para organizar as duas divisões e estas tiveram que ser armadas pela Inglaterra, e também não tinha navios para enviar tropas o que fazia o país depender da Inglaterra.

Por outro lado os militares Britânicos, e Franceses, também não sabiam como responder aos desafios da guerra moderna. Lutavam com as tácticas de Napoleão, que implicavam o combate a curta distância, mas viam-se perante a primeira guerra industrial do mundo. A solução foi a conhecida, uma guerra de desgaste, em que ganha quem ficar vivo no fim.

Muitos dos comandos das forças portuguesas, também pautavam pelo desleixo e pela falta de capacidade. Uma tropa analfabeta, comandada por um punhado de oficiais, grande parte deles sem qualificações e apenas medianamente alfabetizados. Oficiais crentes no valor do soldado português, mas sem entender que o mundo muda e que as guerras, já em 1918, estavam a ser ganhas pela capacidade industrial, e pela qualidade técnica dos comandos militares.». (in Área Militar)

Portugueses nas trincheiras da Flandres
Ainda na perspetiva crítica, e também em jeito de "provocação" para reflexão inquieta(nte), achamos pertinente reproduzir aqui um artigo interessante e bem escrito de Luís Bonifácio, intitulado «O desastre de La lys - Portugal na I Grande Guerra», publicado num website comemorativo do centenário da República e que traduz um pouco da fama infame de La Lys que perdura na memória nacional: 

«Há 91 anos os soldados e sargentos que se encontravam nas trincheiras da Flandres, desataram a correr assim que viram os soldados do Exército Imperial Alemão a meio da terra de ninguém. Os seus oficiais, aqueles que ainda não haviam desertado a coberto de uma qualquer licença, já haviam há muito abandonado os seus confortáveis quartéis.

Para trás ficaram 7 000 baixas, entre mortos, feridos e prisioneiros.

Ao fim do dia apenas restou a vergonha de todo um corpo de exército relegado para trabalhos braçais na retaguarda até ao dia 11 de Novembro.

O desastre de La lys não foi nenhuma novidade. Estava anunciado havia muito. Mais precisamente desde que, em 1916 o governo de Afonso Costa, acossado por todos os lados, declara guerra à Alemanha, na tentativa de inventar um inimigo externo que desviasse as atenções dos problemas internos.

Nesse dia ficou traçado o destino de milhares de Portugueses: um exército depauperado, comandado por oficiais incompetentes, cuja promoção dependia das simpatias políticas, iniciou em Tancos uma preparação para uma guerra inexistente, chamada pomposamente de “Milagre de Tancos”. Esse “Milagre”, vendido pelos jacobinos republicanos à opinião pública, como os milagres da Igreja do Reino de Deus, terminou assim que os membros do Corpo Expedicionário Português (CEP), cheios de Febre Tifóide desembarcaram em Brest, obrigando os aliados a confiná-los em quarentena afim de evitar uma epidemia catastrófica. O horror do aliados aumentou ainda mais, quando descobriram que todos os militares dos regimentos de metralhadoras, desconheciam em absoluto o funcionamento da metralhadora Lewis, o padrão dos aliados, e que os artilheiros ficavam embasbacados com a visão de uma peça de grande calibre.

Nos campos da Flandres teve de ser realizado novamente e a partir do zero, o treino para a guerra de trincheiras.

Sem meios para assistir o exército em França (Portugal apenas tinha dois velhos navios de transporte e nenhum de escolta), e dependente da boa vontade e paciência Britânica, o CEP ficou entregue à sua sorte, sem material nem reforços assim que começou o transporte do exército Norte-Americano para a Europa, fazendo com que os pobres praças Portugueses apodrecessem na lama e frio das trincheiras durante oito meses, quando os seus aliados e inimigos realizavam turnos de 30 dias.

Os oficias, esses, estiveram sempre bem instalados, atrás de secretárias, sempre com licenças para passeatas em Paris-Plage. Aqueles com boas ligações políticas conseguiam uma licença para visitar a família em Portugal, o que sempre significava uma viagem de ida sem volta.

Não admira por isso que, na madrugada de 9 de Abril de 1918, os praças Portugueses tenham atirado as espingardas para o chão, e fugido.

Foi a corrida pelas suas vidas. Foi a única coisa honesta que podiam ter feito.

Fugir a sete pés era a única coisa que uma República, que pouco ou nada se importou com eles, merecia» (fonte)



* Há autores que consideram estes números bastante inflacionados, apontando para baixas portuguesas em La Lys bem mais baixas, da ordem das poucas centenas de mortos. É, pelo menos, a conclusão da historiadora Isabel Pestana Marques, autora da obra «Das trincheiras com saudade» (a Esfera dos Livros, 2008). Em declarações à agência Lusa, por ocasião do lançamento do seu livro, sublinhou que «Portugal participou na I Guerra (1914-1918) fundamentalmente para «legitimação da República e para o seu prestígio, para procurar fazer esquecer internacionalmente o regicídio (1908) e unificar os portugueses pela causa da guerra, o que falhou». A participação portuguesa está, na avaliação da historiadora, muito mistificada, desde logo pela mortandade que afirma não ter não existido e pelo mito do «soldado desconhecido». Segundo a historiadora, morreram dois mil militares portugueses na Europa, 300 deles na batalha de La Lys, muito abaixo dos números divulgados, e seis mil foram feitos prisioneiros. «Inflacionámos os números para obtermos mais dinheiro das indemnizações de guerra», indicou a investigadora.» (fonte

Prefácio. Introdução a uma guerra e a um blogue

Todas as guerras são estúpidas. Mas há, certamente, umas mais estúpidas do que outras. A I Guerra Mundial foi particularmente estúpida. Sendo amador de História da Guerra, disciplina mui nobre no catálogo das especialidades historiográficas e conhecendo sem grande profundidade mas muito interesse e abrangência o primevo percurso bélico do homem, é isso que ressalta quanto mais estudo a Grande Guerra, como hoje, cem anos depois, ainda é conhecida, depois de uma segunda ainda mais devastadora. Isto é, a I Guerra Mundial tem a particularidade de juntar a escala gigantesca de morticínio a um elevado nível de incompetência, crueldade, sofrimento, teimosia e inconsequência.

No rescaldo da batalha de La Lys
A chamada Segunda Guerra Mundial foi, de facto, bem mais mortífera, e a Grande Guerra posiciona-se "apenas" no sexto lugar das guerras mais mortíferas da história da humanidade. Cem anos depois, no entanto, a "Grande Guerra" é a que decorreu entre 28 de julho de 1914 e 11 de novembro de 1918 entre os Impérios Centrais liderados pela Alemanha e os Aliados. Entre os Aliados, em grande medida graças à secular aliança com a Grã Bretanha, encontrou-se Portugal. Um país que dava os primeiros passos, tumultuosos e dolorosos, na democracia republicana instaurada em 1910. Democracia essa que faleceu jovem, em grande medida por causa da participação portuguesa na Grande Guerra.

Outra consequência de monta e médio prazo: A neutralidade que Salazar decretaria em 1939 tem raízes profundas nas memórias ainda frescas do sofrimento sem precedentes da I Guerra Mundial. Sofrimento direto das mortes em combate (cerca de sete mil, segundo as melhores estimativas, a maioria em África) e em jeito de fome e miséria, que varreram o país nos anos da guerra e subsequentes, e a que se juntou o quarto cavaleiro do apocalipse, o da peste: a devastação que a I Guerra provocou na Europa preparou também terreno mais que fértil para uma pandemia terrível de gripe espanhola, logo em 1918. Surto que em Portugal reclamou entre 120 a 140 mil mortes. No mundo, estima-se que tenha morto até 40 milhões de seres humanos. A gripe foi como que a cereja macabra em cima do bolo de violência sem sentido aparente da Grande Guerra. Dizemos sem sentido aparente porque, ao contrário de outras guerras, como a II GM, onde se divisa um sentido (que seria para os Aliados, por exemplo, a aniquiliação do grotesco nazismo expansionista), a I Guerra perde o sentido em muitos aspetos, a começar pelos contendores relutantes...

O processo que levou ao desencadear da Guerra não foi o impulso agressivo de um ditador, uma vontade expansionista, ou uma necessidade de anexar recursos e território; não foi sequer o coração de uma mulher, razões mais tradicionais para uma guerra. Foi o resultado irrestível de uma série de acontecimentos, intrígas, mobilizações e ações defensivas. O menino foi feito na Sérvia, o pai era um anarquista sérvio com a mania das grandezas chamado Gavrilo Princip e a mãe era a fanília real do Império Austro-Húngaro, que arrastou para a cerimónia os padrinhos:  a Alemanha, de um lado, e os Aliados, do outro, apadrinharam a criança mais tarde, embora sem grande entusiasmo*. Era uma Guerra que ninguém queria, um filho enjeitado que todos se viram obrigados a abraçar.

Outra característica estúpida desta Guerra prende-se depois com a própria natureza da progressão (isto é, falta dela) dos exércitos no terreno. Disputada principalmente por potênciais coloniais europeias - sendo a Alemanha um dos mais recentes membros do clube dos países com territórios ultramarinos, para desgosto de colonialistas instalados e dominantes como a Grã Bretanha -, a I Guerra foi também o primeiro conflito de larga escala altamente mecanizado. Foi como tal também um terreno de eleição para testar a capacidade dos novos e terríveis sistemas de artilharia, aviões, couraçados, gás, submarinos, blindados e outros armamentos com um poder de fogo nunca antes visto. Esta capacidade mútua destrutiva conduziu ao impasse brutal da guerra das trincheiras na Europa, que as cúpulas militares obstinadamente mantinham e as cúpulas políticas eram incapazes de resolver. Um desgaste lento e genocida que se arrastou por quatro anos que mudaram o mundo.

Por tudo isto e muito mais: recordemos e aprendamos. Este blogue pretende ser, enfim, um contributo para essa aprendizagem e uma fonte de recurssos para quem queira saber mais acerca de Portugal na Grande Guerra.


* Mais recente trabalho de investigação e reflexão histórica tem produzido uma certa recalibragem da "narrativa" a que estávamos habituados relativamente à I Guerra, nomeadamente a que diz respeito à responsabilidade da Alemanha no conflito, estando a inverter-se a habitual perspetiva de demonização germânica. A questão está longe de ser simples e as responsabilidades (culpas) são bem mais disseminadas. Uma coisa é certa, o Kaiser não marchou entusiasmado para a guerra, procurou apaziguar a tensão entre os aliados austro-húngaros e a Rússia, potência aliada da Sérvia, e só mobilizou os seus exércitos depois da Aústria-Hungria, a Rússia, a França e a Sérvia o terem feito. Há muitos mais pormenores ultimamente clarificados, que poderão ser objeto de análise neste blogue mas, em suma, isto para dizer que não há inocentes nesta história e que nem sequer foi uma guerra "justa". Foi um equívoco, que terminou num equívoco ainda maior chamado Tratado de Versailles.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Jaime Cortesão. Crónicas de um médico nas trincheiras.

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A BATALHA DO LYS

9 de Abril de 1918

Lázaro, ergui-me do sepulcro. Vivo com a frescura de emoções de quem renasce.

Já vejo alguma coisa e dou o meu passeio pelo corredor do hospital.

Mas, porque a minha memória foi profundamente abalada e um véu de sombra me empana ainda os olhos, o mundo e a vida, onde eu reentro; surgem do Caos, brilham a custo, através de um nevoeiro espesso e primitivo. Não vejo as linhas contornais das coisas e dos seres. Lobrigo apenas manchas paradas e sombras que se movem.

Voltou-me com violência, nova o desejo de viver. Consequentemente o interesse pelas novas da guerra.

Das nossas tropas vem a notícia de mais um raid, realizado com grande valentia. O Américo Olavo consegue levar a sua gente até à segunda linha boche, mas a noite chuvosa, a terra encharcada, e mais do que isso a rápida retirada dos alemães, não lhe dão os felizes resultados que o seu valor merecia.

Com este é o terceiro grande raid das nossas tropas, pois já antes do Olavo, o capitão Vale de Andrade realizara uma incursão às linhas inimigas com muito e feliz arrojo.

De toda a parte chegam sinais de que a luta se intensifica. Espera-se, a cada hora, que a ofensiva alemã, iniciada na direcção de Amiens se generalize a outros pontos da frente.

Mas, - coisa inevitável, - os nossos soldados, começam a revoltar-se. Sim, inevitável. Pois se de Portugal não mandam reforços e nos esquecem, e os altos comandos, sem a coragem de protestar por todas as formas contra esse desprezo, fazem todos os dias aos soldados promessas de descansos e licenças que nunca chegam, e exigem dalguns milhares de homens o dolorosíssimo esforço, que nos outros exércitos se distribui por centenas de milhares, que menos se poderia esperar?.

O desfalecimento, a exaustão, o desespero atingiram o auge nas nossas fileiras.

Hoje enfim as nossas tropas da frente vão ser rendidas em massa. É uma deslocação total para a retaguarda. E como não há portugueses para essa rendição, o nosso pequeno sector vai cair em mão dos ingleses, ficando nós sem um soldado nas linhas!

Eu estou no Hospital das Doidas, em St. Venaint, numa grande parte do qual se improvisou o nosso Hospital de Sangue n.º 2. É um vasto conjunto de casas apalaçadas, dispersas num grande parque, em cerca.

Há ali algumas centenas de mulheres loucas.

Às quatro horas da manhã, deitado na minha cama, acordo ao trovão estupendo duma granada de 31 ou 38, estoirando próximo. O alto e vasto edifício baila sobre os alicerces, e os grandes estilhaços, como bolidos incendiados, rugem e sibilam, sinistros, cortando as paredes e os telhados. Depois outra. E não param. De espaço a espaço, um abalo fundo de terramoto é o espadanar estridulo da metralha. Para as linhas um rebentar de tempestade oceânica raiva, furibundo. O coração aperta-se à lembrança dos que andam àquela hora sobre as altas ondas de fogo e terra.

Quase todos os doentes, que podem levantar-se, vagueiam de luz acesa pelo hospital. Médicos e enfermeiros, tudo se ergueu. O trovejar da planície enche as almas de assombro. Só quando dealba a manhã, e as primeiras grandes novas chegam, eu e o Frazão nos erguemos.

Às dez da manhã sabe-se já que os alemães, numa ofensiva de grande estilo, cuja largueza é por enquanto difícil de avaliar, romperam as nossas linhas e avançam.

Os feridos entram constantemente.

As faces andam pálidas e espantadas. A batalha aproxima-se. Aumenta o seu marulho tonitruante. As novas que chegam rasgam a cada passo o âmbito da tragédia.

A larga cerca do hospital povoou-se pouco a pouco de vultos, clamores e autos, ofegando.

Chego à janela: uma turba que a bruma do dia afunda, invadiu as ruas do parque e a antiga solidão de grupos gesticulantes, acampamentos de acaso, de mantas, máscaras, mochilas e armas, abandonadas sobre a relva dos talhões. Mais e mais grupos entram. Uma ambulância automóvel desliza lentamente e pára em baixo à porta. Do fundo; com vagar, saem em braços volumes humanos, as cabeças e os membros descaídos. Os meus olhos, cuja névoa de sangue deixa apenas entrever as coisas, desta distância enxergam tudo aquilo em sombras moventes.

Com o giro das horas inunda-se o parque; a turba vem às ondas e reflui até se afogar nas casas e nas áleas, e cada vez mais o rumor, que exala, me inquieta e aflige:

-Vai encher-se tudo com feridos, – dizem.

Resolvo então ir ajudar os camaradas, que lá em baixo se estenuam na faina cirúrgica. Esqueço a minha trémula convalescença e desço, agarrado ao corrimão, as escadas que, levam à cirurgia.

-A meio do último lanço chega-me, lá do fundo dos vastos salões, um bafo quente de fornalha e um borborinho confuso.

Entro na primeira estância: regurgita de feridos, lançados em macas, a esmo, sobre o ladrilho do chão, de lés-a-lés. Ao primeiro relance lobrigo apenas, lançada por terra, a massa azul-cinzenta das fardas, manchada de lama e sangue.

Ouve-se um remexer dorido, gemidos baixos, rouquejos. E logo, distintamente, salta-me aos olhos a visão dum grupo tragicamente imóvel, ali ao pé, rente a mim, e à orla do amontoado humano: é um padre que reza, ajoelhado, as orações da última hora, dobrado sobre um vulto estendido e inerte com uma face branca e fria de gelar.

O meu olhar, que sai da escuridão recente, ao encontrar-se de novo com o Mundo, cerra-se aflito e atónito.

Para seguir às salas da frente é mister entrar num cortejo de soldados, sopesando em macas mutilações humanas. Ali trabalham sem descanso três equipes de operadores.

Lançados ao acaso sobre as macas, os feridos de mais gravidade esperam a sua vez. Um cheiro pesado e morno a éter, sangue e entranhas violadas entontece e engulha. À beira deste ou daquele pingam nascentes de sangue. O chão é todo manchado pelo rio vermelho da vida que extravasa.

Oh! mas este odor a matança é intragável. Paro, hesito. Não, não posso. É demais para as minhas forças débeis. E depois, estes gritos! ... Alguns psalmodiam queixas lúgubres. E, a espaços, forma-se um coro desgarrado de apelos e uivos, como de reses mal abatidas.

Um homem com a cara cor de chumbo e lama, sacode no ar um coto de braço empanado, todo rútilo de sangue, e implora, uivando:

- Não me deixem morrer! Tenham pena de mim!

Ali, para um canto, caiu uma horrível massa humana ensanguentada e informe; não se lhe vê a cabeça, todavia aquilo geme numa suprema despedida, muito baixinho, de cortar o peito:

- Ai ! minha rica mãezinha ! - como um degolado, cuja voz, tão sentida é, nascesse do próprio coração. 

E a um dos lados, contra a parede, alçou-se agora da sua maça um vulto lívido, numa palpitação de fantasma, olhou de longe e à volta com duas brasas nos olhos, mexeu os lábios, quis dar um passo e recaiu pesadamente.

Vou tentar um esforço. A piedade galvanizou-me e dirijo-me a um dos médicos:

- Dê-me também que fazer.

Mas o odor e a vista da carnagem acabam de vencer-me. Cambaleio, fecho os olhos, descaio contra a parede.

- Não, você, - diz-me ele, - não pôde ficar aqui, suba à enfermaria dos oficiais e, se quer, dê os primeiros socorros aos gaseados.  

Saio; e resolvo não olhar aos lados, no receio de cair ao chão. Não obstante, aquela visão palpita à minha volta, já se esvanece, logo se aclara, numa lenta espiral de gestos e manchas de crúor. Vou à toa; os sentidos tacteiam.

Tropeço num vulto que está de bruços no chão. E, ao seguir no corredor, alguém, que passa sobre uma maca alta, chama peto meu nome, numa, voz passada de lástima e dor. Volto-me e, quase na frente, uma cara marfínea, aberta em fundos de agonia, coalha dois olhos glaucos contra mim. Fito, atónito, aquele rosto de espectro, sem atinar quem seja.

E a voz volta, carinhosa, esmolando já de longe:

- Não se lembra?!

- Não me lembro.

Revolvo cá dentro a memória atorpida; mas em vão. Tento sacudir este marasmo: tudo inútil. Quem será?! Aproximo a minha da sua horrível face. Que mágoa de o não conhecer! Mas, perante o meu espanto mudo, os olhos vítreos fecharam-se e a boca emudeceu também, selada por um cansaço infinito.

A maca segue e eu fico a olhá-la aturdido, quase com remorso. Aquela alma, a debater-se rio fundo da sua agonia, esperava decerto uma palavra amiga de conforto. Que chama de sofrimento lhe queimou a face, se a não conheço? Sigo, mas a lembrança do desconhecido alanceia-me agudamente.

Subo de novo. Oficiais gaseados entram constantemente. Os dois primeiros já morreram de colapso cardíaco. Um tem na cara roxa de defunto uns olhos rubros de laca. Outros vêm, figuras lívidas, queimadas, farrapos e crostas de lama, cambaleiam, desabam sobre as camas e depois que os despem ficam longamente sem falar nem bulir.

Há-os sacudidos de vómitos brancos, intermináveis.

- Da minha bateria escapei só eu, – diz um.

E aquele que está sentado, com a cabeça entre as mãos e os olhos perdidos, repete com voz cava, falando consigo:

- Foi o Alcácer-Quibir do C. E. P. ...

Há-os tão inertes que parecem empedernidos de cansaço. Outros endoideceram de espanto.

O capitão Queiroz do 20 de Infantaria, amparado por dois soldados, avança, todo encharcado em lama, negro, desvairado, pintado a sangue e pólvora. Tomo conta dele; faço-o despir, examino-o, dou-lhe os primeiros cuidados. Foi atingido e rasgado por estilhaços aqui e ali, numa perna, nas costas, no pescoço, e sufoca de gases. Como conhece o Frazão, que está ali perto e me auxilia, conta-lhe a batalha em gritos, anseios e gestos doidos. Mas dir-se-ia possesso daquela visão de inferno. Como alguém escapo a um cataclismo, treme todo ainda do grande arrepio.

- Eu estava nas linhas, Frazão. Saíamos hoje de manhã. Às 4 da madrugada rompe um dilúvio de metralha tão formidável, como nunca vi nem sonhei. A tempestade de ferro durou horas.

Um do lado confirma, com os olhos dilatados:

- Eu vi, eu vi: Ao atravessar os campos as granadas caíam aos milhares! Alevantavam o chão todo! A terra fervia em cachão!

E este

- As aldeias ardiam como archotes alumiando a noite!

E aquele:

- Lembrava o Inferno, a terra toda a ater!

O outro agora ergue-se e avança, recua, esbraceja, pincelando a sua história num delírio.

- Depois ao vir da manhã atacaram. Atacaram em massa, às ondas, sempre em ondas, numa catadupa de homem. Só muito perto os vimos surgir do nevoeiro espesso da manhã. De nós os que ficámos, raros intactos, resistimos até à última. Houve cargas de baioneta. Uma fúria! Tu sabes: a coisa que mais detesto são os falsos heróis. Mas ninguém, ninguém faria mais. E tu conheces como estávamos cansados... A seguir abateram ou manietaram tudo à força de número. Vi junto de mim, ali ao pé, oficiais alemães, pistola em punho, atirando sobre os poucos que tentavam salvar-se. Eu próprio estive envolvido. Atirei sobre um. Resisti. Furtei-me. O nevoeiro, o fumo da pólvora; a poeira levantada no ar eram tão densos, que pude escapar com duas ordenanças Todo o meu terror era cair prisioneiro: Antes morrer, morrer mil vezes! Lá venho. Mas os caminhos tinham sido apagados pelos fundões dos rebentamentos e andámos de cova em cova, aos rebolões, errando. Logo, alguns passos dados, caio e zás! fico enterrado até os ombros na lama dum dreno. Já me dispunha a morrer, a ficar ali, sem forças para mais. E os meus homens, -como eles são dedicados! - teimaram, que não arredavam pé e, à força de pulso, arrancaram-me ao charco. Lá vim, de trambolhão, caindo aqui, além me erguendo, no meio da tormenta. De começo, ao rebentar das granadas, ainda me lançava a terra; depois, perdido, cortando os campos ao acaso, ferido, exausto, cambaleante, nem as ouvia, nem me importavam, insensível ao perigo.

Este homem não cansa de falar. O furacão da batalha entrou, lá dentro, açoutou-lhe os nervos e a sua emoção despenhada rola e corre, sem parança. Ajunta traços novos: os feridos mais graves, que ficam à beira dos caminhos, de pernas jarretadas; nadando em sangue, à espera da morte.

Alguém pergunta:

- E onde estão os boches?

E ele:

- Não sei: em La Gorgue, em Laventie... no diabo... Os nossos resistem em muitos pontos da Village Line. E encontrei batalhões de escoceses, os que haviam de render-nos, marchando para lá, magníficos, a cantar.

Um enfermeiro vem e diz-me que um oficial ferido, há pouco chegado, me pede para ir falar-lhe.

- Onde é?

-No pavilhão, ao pé da capela do hospital.

Desço ao parque. A multidão peja o recinto.

A ressaca furiosa da batalha vem ali bater às golfadas, e espadana, volteia, ruge como as ondas, que invadem as grandes furnas a meio da costa, dentro do Mar.

Desde a manhã raras granadas calam nestas paragens; mas agora ao começo da tarde afluem umas trás doutras; e, aqui e além, desabam explosões, enquanto as shrapnells de 15 ribombam sobre o hospital.

As ambulâncias automóveis entram, correm, partem de novo ou estacam e arfam trepidando. Paro desnorteado. Para lá dos meus olhos baços vai um formilhar de espectros, que desemboca dos carros fundos, sopesa macas, e se dispersa ou chocarem redemoinhos e grita, comanda, ulula.

Entro no pavilhão e busco com o olhar algum rosto conhecido. As granadas caem, estoiram lá fora. Logo à entrada, dentro duma cama, vejo um homem em quietação extrema. Só a face, cujo tom plúmbeo ressalta na brancura do lençol, narra uma dor horrível.

Os olhos estão cerrados, mas a contractura violenta dos masseteres, o latejar das têmporas e o premir raivoso dos beiços, de comissuras caldas, dizem o esforço de não gritar. É o capitão Almiro de Vasconcelos. Um enfermeiro conta-me em voz baixa que tem uma coxa esfacelada.

As camas estão cheias.

Então lá do meio um gesto brando acena-me. Avanço até ao leito, donde sai um meio corpo inquieto e uma cabeça de face inchada, os queixos atados, deixando ver junto da boca o extremo duma larga ferida.

Custa-me a reconhecê-lo, tão deformado e branco tem o rosto. É o alferes Jaime Leote do Rego. E baixinho, que o bulir dos lábios abre-lhe dares na face, conta-me o seu caso.

Noite ainda, marcha para a frente, a restabelecer as ligações telefónicas. Já alguns ingleses abandonam as baterias esfaceladas. E ele continua na sua faina, em meio da tempestade, arrostando longo tempo, no cumprimento terrível do dever, o vendaval de ferro e fogo, até que um estilhaço lhe rasga a face desde a orelha à boca. Duas horas tem que andar a pé, esvaindo-se em sangue.

Lá fora e perto urna granada estoira com violência. Um sacudir convulso de paredes. E o moço herói, agora aniquilado, com inquietação febril, agarra-me na mão e pede que o não deixe, se acaso evacuarmos o hospital.

Vou saber, - digo-lhe; - e ao sair, acaba de se espalhar, veloz, a ordem de evacuação. Todos os doentes ou feridos que andem pelo seu pé, por grave que seja o seu estado, teem de abandonar o hospital e seguir para, as ambulâncias da retaguarda, a, mais próxima das quais está dali a três léguas. Os outros, os feridos de gravidade, hão de sair pouco a pouco nas ambulâncias automóveis.

Como a tarde cai rapidamente e já se ouvem as granadas de pequeno calibre, prenúncio de que a batalha se avizinha, e os automóveis carream para ali novas de horror e faces de tragédia, o clamor, a angústia, o redemoinhar precipito da turba decuplicou.

Mais um automóvel com feridos.

São os homens patilhados da brigada do Minho. O capitão Franco esfarrapado, coxeando, cor de cera; o tenente Branco com a cara e as mãos queimadas, em carne viva, e outros, outros ainda. Dentro do automóvel, em viagem, um estilhaço veio matar um dos feridos.

Encontro-me com o Frazão. Temos que sair quanto antes. A noite e os boches estão perto. Os corações das gentes batem com o ritmo espantosa da tragédia. Algumas levas abalaram já e a estas horas seguem pelas estradas. Conto-lhe do Leote. Temos que ir lá, e vamos os dois falar-lhe. Ele sabe já. Mas os ecos surdos ou violentos das explosões incessantes, o receio de ficar para ali abandonado ou sepulto em escombros, na noite e na catástrofe, acendeu-lhe o desejo de viver numa fogueira de aflição. E, pois que se esvasou em sangue e lhe encheram os vasos de estimulantes para lhe manter o coração, tomou-o uma embriaguez louca. Tenta erguer-se, agarra-se-nos, e suplica-nos, com gestos desvairados, que o não deixemos ali.

- Mas como, - dizemos nós, - se está exangue, sem forças e aos primeiros passos vai cair por terra?!

- Não! Não me deixem! Não me deixem l Vou amparado. Vocês seguram-me, verão... Eu posso...

O escuro da tarde já invadiu a sala. Há vultos que lutam, peito a peito, com a sombra e o pavor. E eu vejo apenas alumiando aquele fantasma estrebuchante os dois olhos fixos, a arder, como carvões acesos.

Pam... Pam... Boum... fazem lá fora as granadas. E ele quer saltar, ir connosco. Debate-se, alteia-se, crispa as mãos, como um afogado, prestes a afundar-se.

Está doido, está bêbado de pânico...

Eu que já conheço, por experiência própria, aquele estado de terror, que segue as grandes quebras físicas, em casos tais, sofro com angústia da minha piedade, impotente.

Saímos. É forçoso abalar. No parque gente chama, corre, dá ordens. Os automóveis vêem, voam, partem; a noite aguilhoa o movimento da turba vertiginosa.

Eu, o enfermeiro Baldaia, o meu impedido, o tenente Frazão e outros oficiais partimos num grupo. Ao sairmos, uma granada cai perto. Alguns, soldados lançam-se por terra, e o Frazão increpa-os com escárnio, dizendo para lá das palavras o seu espanto de que àquela hora alguém tenha ainda o receio de perder a vida.

Na estrada vamos engrossar o longo cortejo dos que retiram: - farrapos de regimentos, famílias de civis com as crianças ao colo, carretas conduzindo os restos dos lares, trabalhadores chineses, e, em grupos soturnos, soldados portugueses, ingleses, australianos, tudo numa torrente apressada, silenciosa, devorada pelo drama comum.

Atrás afogou-se na sombra o palácio dos doidos, dos cadáveres, dos mártires, dos moribundos, erguido à beira do rio humano, como um genial monumento de aflição.

Vamos, como feras acossadas por um incêndio, olhando de vez em vez para trás com olhos endoidecidos pelo espanto. Vamos levados, impelidos, arrastados, como coisas inertes na catadupa dolorosa. Andamos horas. Sigo amparado, vacilante; esfrangalhado.

A névoa, a noite, a fome, a fadiga, a cegueira, que de novo me empana os olhos, o surdo estrépito da caravana maldita galgando os caminhos, aquele potenciar constante de misérias e dores já me alucinam.

Que verdade?! que pesadelo?! que sonho hediondo é este?!

E um desejo desesperado se enraíza cá dentro de juntar as derradeiras forças para numa revolta última, atirar-me à valeta e ficar ali até que a morte me salve. (...)

Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra (1916-1919), Porto, Renascença Portuguesa,"Biblioteca Histórica, Memórias II", 1919, pp.200-214. (fonte do excerto)

A I Guerra Mundial. Uma série documental qualidade BBC. 1ª parte: "Às Armas"




Capítulo 2: Sob a Águia
Capitulo 3: Guerra Global
Capítulo 4: Jihad
Capítulo 5: Acorrentado a um cadáver
Capítulo 6: Rompendo a Paralisia
Capítulo 7: Bloqueio
Capítulo 8: Revolução
Capítulo 9: A última jogada da Alemanha
Capítulo 10: Guerra sem fim

Lições do Passado. Alemanha debate o seu papel na I Grande Guerra

«Na Alemanha, o debate está sendo impulsionado especialmente por dois lançamentos literários monumentais: Der Grosse Krieg: Die Welt 1914-1918 (A Grande Guerra – O mundo em 1914-1918), de Herfried Münkler, e a tradução para o alemão de The sleepwalkers: How Europe went to war in 1914 (Os sonâmbulos: Como a Europa foi à guerra em 1914), do australiano Christopher Clark. 

Este último questiona o que desde a década de 60 é tido como consenso entre os historiadores alemães: que a culpa pelo início da Primeira Guerra Mundial foi da Alemanha. Na contramão dessa certeza, Clark descreve os eventos até a eclosão, em agosto de 1914, como "resultado de uma densa sequência de acontecimentos e decisões, num mundo entremeado de relações e conflitos múltiplos".(...)». Continua aqui: Cem anos depois, mídia internacional dá destaque à Primeira Guerra Mundial | Cultura e Estilo | DW.DE | 15.01.2014

domingo, 19 de janeiro de 2014

Introdução: "Portugueses nas Trincheiras". Um doc

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«(Recordar as provações passadas pelos 55.000 soldados portugueses enviados em 1917 para o Norte de França. O Corpo Expedicionário Português era constituído por camponeses arrancados às suas aldeias, treinados em Tancos, embarcados para terras distantes, enterrados em trincheiras e esquecidos quando Portugal vivia mergulhado em convulsões. Em 9 de Abril de 1918, foram milhares a cair prisioneiros. O Alto Comando alemão fazia a derradeira tentativa para derrotar os Aliados.» (in sinopse RTP)

Produção RTP
Um programa de: Sofia Leite e António Louçã
Imagem: Rui Lima Matos
Edição de imagem: Paulo Marcelino
Captação e pós-produção áudio: António Garcia e Carlos Nunes
Produção: Ana Lucas