domingo, 16 de fevereiro de 2014

A Índia e a memória relutante das colónias. A I Guerra como conflito de impérios coloniais

Num dos anteriores posts, falámos (ainda que ao de leve) na Nova Zelândia. A I Guerra, sendo Mundial (sim, ainda há quem ache que não foi), envolveu tropas de países de todos os continentes, não só por via de um cenário intrincado de alianças entre nações soberanas, mas também porque a I Guerra foi sobretudo um conflito entre potências coloniais, que mobilizaram todas as suas possessões imperiais para o esforço de guerra. 

Soldados indianos na Batalha do Somme, em julho de 1916.
Foto da coleção do Imperial War Museums (fonte)
Isto significa, por exemplo, que a Grã Bretanha tenha recorrido a contingentes ultramarinos dos quatro cantos do seu Império: Nova Zelândia, Austrália, Canadá, África do Sul e, com grande destaque em termos de tropas e baixas, a Índia. Em muitos aspetos estes países eram já autónomos, mas de uma forma ou de outra pertenciam à esfera de influência britânica, que mantinha controle, por exemplo, das respetivas políticas externas. Ainda hoje se mantêm nessa esfera de influência, constituindo a espinha dorsal da Commonwealth. Mas, sendo colónias, a sua importância não pode ser subestimada.

O caráter "imperial" desta singular guerra fica também patente, naturalmente, no envolvimento das principais colónias africanas portuguesas, Moçambique e Angola. Estes territórios foram palco de muitas batalhas e escaramuças com as forças alemãs, que procuravam manter e expandir as suas possessões africanas, sobretudo o Tanganica e o Sudoeste Africano - sendo de referir que Portugal também não se fez rogado na tentativa de manter e expandir, abrindo hostilidades no norte de Moçambique, com uma incursão ao Tanganica. Do lado português, estima-se que combateram cerca de 12 mil soldados africanos indígenas*: «O contingente português atingiu números próximos dos 20000 homens, entre as forças desembarcadas e o recrutamento local, com um efectivo, grosso modo , de 12000 africanos (12) sem contabilizar os aproximadamente 90000 carregadores (13).» (fonte)

O caso da Índia é particularmente importante no quadro global da guerra, quanto mais não seja, pela escala das forças nativas utilizadas e pela dimensão das baixas. E neste caso, ao contrário dos africanos sob domínio português, que serviram o exército português nos seus territórios natais, as tropas indianas serviram em locais tão distantes e inóspitos como o Médio Oriente e a Turquia (sobretudo no célebre estreito de Dardanelos, palco da desastrosa Campanha de Galípoli) contra o Império Otomano, bem como no Egito, África Oriental e nas trincheiras geladas e lamacentas do Norte da Europa. No total, cerca de um milhão e trezentos mil indianos foram mobilizados para o esforço de guerra e as Forças Expedicionárias Índianas sofreriam 74187 baixas mortais, a que se somam mais de 69 mil feridos (a Wikipedia refere um número ligeiramente inferior de feridos).

E no entanto, sendo este um episódio marcante da sua História recente, os indianos parecem não querer falar muito acerca do tema. Tema que em círculos nacionalistas é até algo embaraçoso. Do que tenho percebido, de resto, é um traço comum às ex-colónias ultramarinas, sejam portuguesas, sejam inglesas ou francesas: à exceção das ex-colónias com população de origem europeia/branca - Nova Zelândia, Canadá ou Austrália, que celebram e estudam com grande solenidade a sua participação neste conflito - a I Guerra é regra geral uma memória reprimida. Dá a ideia de que, para africanos ou asiáticos, a I Guerra foi um assunto de brancos, para o qual foram arrastados sem honra nem vontade. A I Guerra está, assim, intimamente associada a um passado de subjugação colonial, que não atrai as novas gerações, muito menos os espíritos mais nacionalistas.

O caso da Índia será, desta forma, paradigmático, não andando muito longe, julgamos, do que se poderia dizer hoje em dia acerca de Angola ou Moçambique - numa breve pesquisa, não encontrei, nem num nem noutro país, qualquer menção ao centenário da Guerra ou a eventuais eventos que o recordem, ou sequer homenagens aos soldados africanos mortos no conflito, é o silêncio absoluto. Em relação à Índia, então, como é sublinhado no artigo do The Times of India abaixo linkado: «For a hundred years, the story of this force had been nearly forgotten — the narrative of World War I has so far been predominantly white. The Indian story had to be told because it rarely happens that one nation's war is fought by another's armies. But not only did Britain downplay the contribution of these men but India, too, chose to ignore them. In fact, the nationalist voices in free India actively disowned parts of this history.(...)».

E no entanto, as coisas parecem estar a mudar, pelo menos na Índia, que recomeça a interessar-se por este evento brutal da sua história, e começa a investigar e a organizar de forma séria os arquivos dessas datas. Sobretudo pela mão do Centre for Armed Forces Historical Research, em Nova Deli, ou por instituições inglesas como o Brighton Museum & Art Gallery.

Soldado moçambicano da I Guerra Mundial (fonte)
«Sadly, when the survivors returned home, no hero's welcome awaited them. India had given full military, political and economic support (the country had gifted 100 million pounds to fund the war) to Britain anticipating dominion status and home rule in return. But once the war ended, the British were in no hurry to appease India. So, the returning army seemed to Indians like the Empire's instrument of oppression. But now, there is hope that the Indian soldier will get his due place in history.»

No contexto do mundo lusófono, será então curioso perceber o que é que Angola e Moçambique estão fazer (ou não) relativamente à memória da sua participação na I Guerra Mundial, e tendo em conta o pesado balanço - «(...) Mas o teatro de guerra em África foi o mais mortífero para os portugueses - 4811 militares morreram em Moçambique. No rescaldo da Grande Guerra, entre mortos, feridos e desaparecidos "36% dos mobilizados foram baixas", sublinha o tenente-general Mário de Oliveira Cardoso.» (fonte). 

Muitas daquelas baixas foram certamente soldados e carregadores locais, que constituíam grande parte das forças sob comando português, sobretudo oriundas de Moçambique, formadas em Companhias Indígenas Expedicionárias que foram também enviadas para Angola, Timor e Índia. Em tempo de centenário, e apesar de constituir uma memória exógena (anterior à nacionalidade), será, em suma, que o soldado africano, espécie de "carne para canhão" esquecida, também merecerá o seu «due place in history?»...


World War I, the India story retold - Times Of India


*A este respeito há algumas discrepâncias entre fontes, sendo que de acordo com números da História da Primeira República Portuguesa, a I Guerra em África envolveu ao longo dos quatro anos, cerca de 30 mil efetivos portugueses, mais de 10 mil dos quais nativos africanos. 

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