Nas vésperas da Grande Guerra, João Chagas era embaixador em Paris. Fora presidente do ministério (primeiro-ministro), ministro do Interior e ministro dos Negócios Estrangeiros nos primeiros anos da República. A 27 de julho de 1914, um dia antes do início do conflito, escrevia no seu Diário: “Anunciam-me que a Inglaterra propõe uma mediação e que a França se associa a esta diligência. Mas anunciaram-me, também, que as hostilidades da Áustria contra a Sérvia começariam amanhã. Se for assim, é o déclenchement. É a guerra geral, é o fim do mundo.” (Diário de João Chagas, Vol. I, p. 111, 2.ª edição, Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1930).
E foi o fim de um mundo.
Há quem diga que o século XX começou em 1914 e terminou em 1989, com a queda do muro de Berlim e a implosão do império soviético. Teria sido, assim, o século mais curto da história da humanidade.
A diplomacia e, em especial, a história diplomática permitem vários ângulos de análise do passado. Dois são mais importantes:
– Os filtros políticos e diplomáticos atuais, o que pode levar a comparações interessantes;
– Os critérios da época que se analisa e com as informações e os métodos de intervenção políticos e diplomáticos da altura. Ambos são legítimos. Vejamos como eram a política e a diplomacia no início da Guerra, utilizando os critérios de época sem, contudo, os cristalizar.
Em 1914, o mundo era dominado pela Europa:
– Na demografia: 25% da população mundial era europeia; 40 milhões de europeus tinham emigrado nas últimas décadas; e só em 1913, um milhão e 350 mil europeus tinham saído da Europa, sobretudos para os Estados Unidos da América;
– Na expansão imperial: os impérios inglês, francês, português, belga, alemão e italiano somavam 500 milhões de habitantes e expandiram-se por todos os continentes, sobretudo na África e na Ásia, para além da influência espanhola nas Américas;
– Na economia e na produção industrial: embora sem grandes reservas de matérias-primas, a Europa detinha 52% da produção industrial mundial, sobretudo na metalurgia (60%) e no têxtil (70%);
– No comércio internacional, com 61% do total;
– Nos transportes: a marinha mercante europeia representava 85% da tonelagem mundial;
– Nas finanças: a Inglaterra, a França e a Alemanha eram os principais exportadores de capital;
– Na ciência e na tecnologia, que se refletiram nos avanços no domínio militar, no military build up;
– Na expansão religiosa: as missões católicas no mundo tinham 16 000 membros, as protestantes 8000;
– Na cultura, com o vanguardismo, a pintura e a literatura, além da difusão das ideias políticas e de expansão intelectual que, na perceção dos outros povos, equipavam a Europa à civilização.
O destino do mundo era ainda europeizar-se ou ocidentalizar-se. O que está longe de ser o caso nos dias de hoje. Por outro lado, os principais países europeus eram democracias mais ou menos estabilizadas, e, apesar dos tiques imperiais, que veremos quanto ao decision making power, os parlamentos tinham um papel importante na governação.
A Europa era um continente próspero no seu conjunto, embora o Produto Interno Bruto (PIB) francês fosse menos de metade do norte-americano e o PIB alemão 60% do inglês e metade do canadiano.
Numa perspetiva mundial, a presença europeia era determinante em África, na Ásia e na América Latina.
Com exceção de Libéria e da Etiópia, a Europa colonizava a África, incluindo o Magrebe.
O continente africano estava dominado por europeus, que controlavam a administração, a segurança e a economia. A Europa Ocidental era o destino de 83% das exportações africanas e representava 72% das importações. O comércio dos Estados Unidos com a África era inferior a 5% do total.
A Alemanha tinha uma presença reduzida em África, que queria mais robusta. O governo inglês, num acordo secreto de outubro de 1913, repartiu zonas de influência com os alemães à custa de parte das colónias portuguesas de Moçambique e de Angola e, ainda, do Congo Belga. Este acordo nunca viria a ser ratificado por oposição da França. E ainda hoje não há certeza de que os governos portugueses da época tenham sabido do seu conteúdo exato.
Também na Ásia, os interesses europeus eram dominantes. A única exceção era o Japão que derrotaria a Rússia em 1905, na primeira vitória de um Estado asiático sobre uma potência europeia, e que ocupara a Coreia e a Manchúria.
A Europa dominava de uma ou outra forma o resto da Ásia, que já na altura tinha metade da população mundial.
A Índia, com 315 milhões de habitantes, pertencia à administração inglesa.
A Indochina era partilhada por ingleses e franceses. O império colonial holandês, construído em grande parte à custa do antigo império português do oriente, tinha 50 milhões de habitantes. E na China, o peso e a influência europeus marcavam o ritmo comercial, industrial e financeiro, nas mãos de grupos europeus que controlavam a débil dinastia manchu e, após 1911, pilotavam a jovem República chinesa.
A política das esferas de influência tinham trazido para os europeus, sobretudo franceses e ingleses, mas também italianos e alemães, o que restava do império otomano, que perdera os seus territórios europeus e a iniciativa económica e financeira no resto do império. A entrada na guerra de nada lhe valeria, pois ficaria limitado ao que é hoje o território turco.
Contudo, era na América Latina que a presença e a influência europeias mais se expandiam, nos aspetos económicos, sociais e culturais. A influência de espanhóis, ingleses e italianos na Argentina, de portugueses, ingleses e alemães no Brasil, de alemães no Chile era determinante no plano económico e intelectual. A França também estava presente, especialmente, na cultura e no ensino.
A Europa tinha transformado a vida política, económica e cultural da América Latina, por vezes, à custa da classe média local, impedindo de certo modo que as elites locais tivessem autonomia e capacidade de decisão em função de interesses nacionais. E os Estados Unidos da América estavam atentos às oportunidades que iriam surgir com a guerra que se adivinhava e que conduziria – como conduziu – a uma perda de influência e sobretudo da presença económica europeia nas Américas.
Aliás, os Estados Unidos da América e o Japão eram, em 1914, os únicos concorrentes credíveis da Europa.
Com 54 milhões de habitantes, o Japão industrializara-se rapidamente e iniciara uma expansão territorial que iria prosseguir durante a guerra, sobretudo à custa da China. Curiosamente, não são os asiáticos que se opõem a essa expansão, mas europeus e americanos que procuram limitar a zona de influência japonesa.
Com quase 100 milhões de habitantes, os Estados Unidos da América já tinham uma população superior a todos os países europeus em 1914, com exceção da Rússia. O comércio com a Europa era essencial: 67% das exportações americanas, 47% das importações. Cada vez menos produtos agrícolas, cada vez mais matérias-primas e produtos industriais. A política externa dos Estados Unidos é a primeira a refletir com prioridade nas questões económicas e financeiras, concentrando-se, sobretudo, na América Latina (o pan-americanismo e a doutrina Monroe), e na Ásia (na sequência das anexações no Pacífico e na Ásia Oriental). E com uma relativa distância em relação aos europeus. Começa a despontar, também, a rivalidade entre os Estados Unidos e o Japão no Pacífico e na Ásia, que atingiria o ponto de rutura na II Guerra Mundial.
A forte presença europeia no mundo, através dos então chamados impérios coloniais, levou mesmo alguns historiadores, neste Centenário da Grande Guerra, a olharem para o conflito na perspetiva desses impérios, analisando não só uma guerra entre europeus que se tornaria mundial, mas a guerra entre impérios. Pelo envolvimento das colónias, pela mobilização das suas populações, pelas consequências no final do conflito.
Nesta perspetiva (veja-se, por todos, Impérios em Guerra 1911-1923, org. de Robert Gerwarth e Erez Manela, D. Quixote, Lisboa, 1914) talvez a única em que Portugal aparece num plano de igualdade com os outros países envolvidos, o resultado foi esclarecedor:
– A guerra teria acelerado a decadência dos impérios coloniais, que iriam desaparecer no rescaldo da II Guerra Mundial, nas décadas de 60 e 70;
– Na Grande Guerra, os impérios de países ditos “terrestres” como a Alemanha, a Rússia, a Áustria e mesmo o império otomano iriam desaparecer;
– Os impérios de países “marítimos”, como a Inglaterra, a França, Portugal, Bélgica e até a Itália e o Japão iriam manter-se e, nalguns casos, aumentar por força dos mandatos da Sociedade das Nações;
– No Médio-Oriente, a França e a Inglaterra traçariam no pós-guerra as fronteiras que basicamente são as que existem ainda hoje e, como sempre, tal como sucedeu em África na Conferência de Berlim, ignorando etnias, história e religiões. Esta fragmentação teve resultados conhecidos num e noutro caso, infelizmente atuais nos Grandes Lagos em África e com o chamado Estado Islâmico, para só citar estes dois exemplos.
A Guerra de 1914-1918 representou, de certa forma, uma rutura com a ordem que reinou na Europa com o Congresso de Viena de 1815. Na reconstrução da Europa após Napoleão, os Tratados de Viena criaram uma nova ordem ou concerto europeu, que previa que as questões que separavam os países ou os eventuais conflitos deveriam ser tratadas pelas potências, através de uma rede de relações diplomáticas bilaterais e por congressos ou conferências internacionais, dando início a fórmulas incipientes mas estabilizadas do que hoje chamamos diplomacia multilateral.
Este sistema de consultas quase permanente era, sobretudo, pragmático e não normativo. Visava manter os equilíbrios saídos de Viena e evitar novas guerras da amplitude das aventuras de Napoleão. Era facilitado por interesses partilhados pelos Estados europeus da altura, pela aceitação, por todos, de uma civilização e de valores baseados no denominador comum de herança cristã.
Este equilíbrio foi posto em causa sobretudo pela Alemanha, após a Guerra Franco-Prussiana de 1870, concretamente por Bismark, que começaria a cristalizar o poder na nova Alemanha, através de um sistema de alianças que iria romper as plataformas e os entendimentos que vinham do Congresso de Viena.
Foi Bismark e os seus sucessores que estiveram na origem dos dois blocos europeus, a Tripla Aliança e a Entente Cordiale que iriam dividir a Europa.
A guerra viria a ser, como sempre, o resultado e a convergência no tempo de várias causas, e não apenas deste novo sistema de alianças entre europeus.
Podemos inventariar algumas:
– A construção dos blocos europeus: com a Alemanha e o império austro-húngaro, a que se iria juntar a Itália, a Tripla ou Tríplice Aliança, em 1882, os chamados impérios centrais.
– A Entente Cordiale, da França e da Inglaterra, em 1904, a que se juntará a Rússia em 1907, para se precaverem contra uma possível guerra. Esta Entente Cordiale é também o resultado do declínio inglês que necessitaria da França para enfrentar a Alemanha. Esta inflexão inglesa iria suscitar legítimos receios portugueses, já que o então equilíbrio peninsular exigia um aliado forte que compensasse Portugal das assimetrias na península, favoráveis como sempre a Espanha.
– Ao contrário da Tripla Aliança, os países da Entente Cordiale não assumiram nenhum compromisso automático de defesa em caso de guerra.
– Mas a Europa ficaria dividida em blocos na primeira década do século XX. Ao arrepio do que defendia Clausewitz: “Quem conquista prefere a paz; é sempre melhor invadir sem encontrar resistência.”
– As desconfianças na Europa e os confrontos além-mar, nos impérios coloniais, foram agravando as tensões e conduziram a um aumento dos efetivos miliares e a uma corrida aos armamentos, quer terrestres, quer navais. A estrutura de forças começou a ser desproporcionada face à realidade e todas as Forças Armadas dos futuros beligerantes, sobretudo a Alemanha, planearam estratégias ofensivas para uma guerra rápida e curta. Por exemplo, a Inglaterra preocupava-se particularmente com o aumento do poderio naval alemão, que, segundo a Royal Navy, iria atingir capacidades para enfrentar as inglesas em 1917.
– As causas económicas foram igualmente determinantes, já que nelas confluíam os desejos imperiais, a afirmação nacional (hoje diríamos assertiva), o reforço das capacidades militares, a necessidade de manter o crescimento do nível de vida das populações, o acesso às matérias-primas e os interesses geopolíticos da época.
– A mudança das sociedades, sobretudo em Inglaterra, em França e na Alemanha, na sequência da industrialização e da urbanização, influenciaram e pesaram nos processos de decisão política e nas mobilizações militares. Aliás, esses novos figurinos sociais iriam acentuar-se no decurso da guerra e seriam irreversíveis no futuro, apesar dos retrocessos da Revolução Bolchevique.
– Os interesses dos Estados foram-se polarizando nas elites político-militares, mas também nas incipientes opiniões públicas, aparecendo a guerra como a solução para os problemas.
– Os governos começaram a pesar os prós e os contras de um conflito em função dos seus objetivos e interesses nacionais, ou da perceção que tinham desses interesses.
– Como escreveu Marc Ferro: “Cada um pressentia que estava ameaçado na sua própria existência pelo inimigo hereditário e para todos o conflito obedecia a uma espécie de rito fatal” (La Grande Guerre, 1914-1918, Gallimard, 1969).
– As posições dos diferentes países eram tributárias de situações anteriores ou de interesses polarizados:
- A França desejava, acima de tudo, recuperar a Alsácia e a Lorena, que a Alemanha anexara em 1875;
- A Inglaterra queria manter o império e o controlo dos mares, e impedir a Alemanha – que se assumia já como a segunda potência económica europeia – de dominar a Europa e sair para a África;
- A Rússia queria sobretudo assegurar, pelo Bósforo, o acesso às “águas quentes”, anular o império otomano e garantir que a Áustria não controlasse os Balcãs;
- A Alemanha, com uma indústria cada vez mais forte e uma população animada por um patriotismo profundo, queria garantir influência nos mercados na Europa e no mundo, a que se opunham a França, a Inglaterra e de outra forma a Rússia; e pela parte do imperador Guilherme II, que a partir de 1891 abandonou a política de Bismark e anunciou a Weltpolitik como uma potência à escala mundial;
- O império austro-húngaro, um puzzle criado no Congresso de Viena – e onde era sobretudo a máquina administrativa que mantinha a coesão entre populações e nacionalidades distintas – procurava manter presença nos Balcãs e no que é hoje o norte da Itália, e garantir a estabilidade do império;
- O reforço do nacionalismo nos Balcãs e também noutras regiões da Europa seria uma das causas do conflito, bem como as movimentações sociais que iriam dar origem à Revolução de 1917 na Rússia;
- Os outros países, entre os quais Portugal, não tinham expressão ou capacidade de influenciar as decisões dos que foram em 1914 os Estados beligerantes. Apenas a Itália, que faria parte da Tripla Aliança, mas ficaria neutra em 1914, queria recuperar território e população de fala italiana do império austríaco, ter liberdade no Mediterrâneo, no Magrebe e uma palavra em África.
Refira-se, sucintamente, a importância dos processos de decisão política, sobretudo em política externa, na Europa, antes de 1914.
Embora os principais Estados já dispusessem de serviços diplomáticos como hoje os entendemos, apenas em França e em Inglaterra os Ministérios dos Negócios Estrangeiros tinham influência no processo de tomada de decisões. Considerando a importância do parlamento (no caso inglês) e do presidente da República (em França), a colaboração institucional funcionava.
Já no caso dos impérios alemão, austro-húngaro e russo, o processo de decisão tinha em conta a diplomacia, mas estava polarizado no vértice do Estado, na figura dos imperadores. Como refere um historiador que analisou este tema (Christopher Clark, "Os Sonâmbulos"), «essa instituição antiga e esplendorosa que ligava a sorte de grandes Estados aos caprichos da biologia humana».
A diplomacia passava, assim, para um segundo plano, embora fosse mantendo a rotina das funções, em detrimento das capacidades de análise e de influência.
Nos anos que antecederam a Guerra de 1914-1918, a Europa e o mundo foram assistindo e participando em conflitos localizados e secundários que exprimiam de outra forma os objetivos e os interesses dos atores que se iriam envolver na Grande Guerra.
Fora da Europa, a guerra entre os Estados Unidos e a Espanha de 1898, que levou à ocupação de Cuba e depois das Filipinas, ditou o fim do império espanhol. Os efeitos das guerras do Japão com a China e com a Rússia, em 1905, prolongar-se-iam até 1940. O primeiro confronto entre ingleses e alemães seria em África, durante a Guerra dos Bóeres, em 1899, onde algumas das táticas militares de 1914-1918 teriam sido iniciadas.
Na vizinhança europeia, sentiam-se duas tentativas alemãs de controlar Marrocos e de condicionar a França em 1905 e 1911, a invasão italiana do império otomano, em 1911, com a conquista da Líbia e a anexação da Bósnia pela Áustria, em 1908.
Mais graves foram os conflitos nos Balcãs e que seriam a causa imediata da Guerra de 1914. Entre 1912 e 1913, os ataques contra o império otomano, e depois contra a Bulgária, viriam a modificar o mapa da região, mas, sobretudo, a exacerbar os nacionalismos internos e a atrair as apetências externas.
O perímetro desenhado no Congresso de Viena já não garantia a paz na Europa nem os conflitos entre europeus, no resto do mundo. Nos Balcãs, em Sarajevo, o atentado contra o principal herdeiro do império austro-húngaro, em 28 de junho de 1914, é considerado a causa direta da Grande Guerra.
Apesar das circunstâncias, houve diversas tentativas no plano diplomático e político para tentar travar a guerra. A Alemanha faria pressão sobre o império austro-húngaro e Paris sobre São Petersburgo, no quadro das alianças construídas. E os ingleses propuseram uma conferência internacional como mecanismo diplomático para aliviar as tensões.
Provavelmente, foram tentativas com menos convicção, porque todos os atores pensaram que o conflito era incontornável. Mas recusaram, o que ressalta a intransigência alemã e austro-húngara e a vontade em prosseguir o caminho da guerra.
Contudo, no plano diplomático, nas vésperas da guerra, “a política externa já está dominada pela situação militar” (Renovin, Histoire des Relations Internationales, Tomo III, p. 317). A perspetiva da guerra condicionava a diplomacia, as finanças, a generalidade das administrações das grandes potências. A guerra era um objetivo político. E os governos, através dos meios diplomáticos e militares, já tinham iniciado políticas de compromisso, por meio de negociações nem sempre fáceis para manter alguma coesão nos blocos, no que chamamos hoje o equilíbrio dos interesses dos países das coligações. Interesses políticos, diplomáticos, mas sobretudo militares. Esta influência militar na decisão política e diplomática é habitual nas vésperas e no início dos conflitos e começa a diluir-se quando os decisores adquirem a perceção de que as soluções vão ser políticas.
Portugal não tinha voz internacional neste tabuleiro e o seu único objetivo nesses dias foi encostar-se à Inglaterra. E preocuparse com Espanha, como sempre.
Alguns autores (ver por todos Marc Ferro) sublinham, ainda a justo título, a oposição de alguns dirigentes socialistas europeus à guerra: Jean Jaurès, que viria a ser assassinado antes do conflito, Rosa Luxemburg na Alemanha e a oposição trabalhista em Londres.
Realizou-se, mesmo, uma reunião do Comité da II Internacional Socialista em Bruxelas, em finais de julho, onde se procuraram soluções diplomáticas. Porém, como diz Marc Ferro, “discutiram mas não atuaram”.
O ângulo nacionalista superou as convicções ideológicas em França e na Alemanha. E os trabalhistas ingleses entrariam no governo em 1916, em plena guerra.
Qual era a situação em Portugal? Este tema é objeto de outro tema neste colóquio e não devo, por isso, elaborar sobre ele. Deixo apenas duas constatações:
- Em política interna, a instabilidade que pautou o início da República;
- Em política externa, dificuldades de reconhecimento de um novo regime; dependência da Inglaterra; receios de Espanha.
Note-se que, desde a implantação da República até ao início da guerra, Portugal teve sete presidentes do ministério (como então se chamava ao chefe do governo) e outros onze durante a guerra. Passaram por Belém, até 1914, dois presidentes da República e mais seis durante a guerra.
O número aumenta nos dois ministérios que nos interessam:
- Dez ministros do Estrangeiro de 1910 a 1914 e outros 23 durante a guerra;
- Seis ministros da Guerra até 1914 e mais 13 durante a guerra.
Tudo isso tornou difusa e volátil a decisão e a interlocução em política externa e política de defesa, especialmente quando a política externa era toda elaborada e executada em função de relações bilaterais, dada a inexistência de estruturas europeias multilaterais. Como escreveu Carneiro de Moura no seu livro Portugal e o Tratado de Paz, “andávamos demasiado presos à luta íntima das nossas fatais paixões” (Depois da Guerra, Portugal e o Tratado de Paz, Lisboa 1918, p. 28).
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Freire de Andrade, dois meses depois do início do conflito, escreveu ao embaixador de Londres (cito):
«Portugal está pouco preparado para a guerra, pois o seu Exército e a Marinha dispõem de poucos recursos. Não se corrigem em pouco tempo deficiências de muitos anos. Financeiramente também a nossa situação não é brilhante, não temos recursos que são indispensáveis em ocasião de crise sobretudo para comprar os navios e o material de guerra que tão necessários nos são em caso de guerra» (Portugal na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Tomo I, MNE, Lisboa 1997, p. 66-68).
Portugal entra na guerra por várias razões que nos serão, certamente, adiantadas noutro dos temas deste colóquio. Os historiadores concordam geralmente nas três teses – a colonial, a europeia-peninsular e a da legitimação da República – que podem ser convergentes.
Terminada a guerra, só ganharia a vertente colonial, o que pode explicar o que se seguiu. Aliás, é curiosa a observação de Norman Stone, no seu livro Primeira Guerra Mundial (p. 22): “No final do imperialismo europeu, na década de 1970, o país mais pobre do continente era Portugal, que possuía um enorme império africano, e os mais ricos a Suécia, que abandonara há muito a sua única colónia nas Caraíbas, e a Suíça, que nunca tivera império.”
Voltando à Europa, é interessante ver que a estratificação em blocos veio a refletir-se na forma como a guerra se foi estendendo depois de 1914. O conflito começou com cinco beligerantes: as potências centrais da Tripla Aliança, a Alemanha e o império austro-húngaro; e do outro lado, a Entente Cordiale, os aliados, francês, inglês e russo. A Itália, em 1914, declarou a neutralidade e só entraria na guerra no ano seguinte. Depois viriam outros países, que iriam mundializar a guerra: o Japão com os aliados, a Turquia e a Bulgária com a Tripla Aliança, a Itália em 1915 e Portugal e a Roménia em 1916. E, finalmente, os Estados Unidos da América em 1917. Os outros europeus, incluindo a Espanha, permaneceram neutros.
A guerra não viria a interromper a diplomacia, embora a única verdadeira tentativa de paz fosse uma iniciativa dos Estados Unidos da América, antes da sua entrada na guerra em 1917, menos de um mês após a queda do regime de czares na Rússia.
O que surpreende na ação diplomática durante os primeiros meses da guerra, além do cuidado em atrair beligerantes pela França e pela Alemanha, dos esforços de contenção do conflito pela Inglaterra e dos equilíbrios de alguns para manter a neutralidade, é o claro desígnio de começar a pensar nas vantagens que se retirariam no final do conflito.
Em 1914, os dois lados acreditavam que a guerra seria rápida, circunscrita à Europa e limitada aos efetivos militares, como tinha sucedido até então nos conflitos europeus. A mundialização, os efeitos colaterais nas populações civis, o uso militar das novas tecnologias e a própria duração do conflito foram fatores que foram sendo acrescentados pelos decisores políticos e militares. Mas não eram previsíveis quando das mobilizações, única fórmula de dissuasão então existente, nem quando do início do conflito.
Apesar disso, as diferentes diplomacias, com o modelo do Congresso de Viena presente, iniciam análises e consultas sobre a melhor forma de projetar os interesses nacionais e de recolher vantagens territoriais, económicas, estratégicas e militares no final da guerra. Mais do que pensar numa paz negociada, como viria a suceder em 1939-1945, o paradigma das diferentes diplomacias europeias foi traçar os frios cenários do pós-guerra.
O desenho do Tratado de Versailles foi iniciado em 1914. Seria outro se a Alemanha tivesse ganhado. Mas isso é o outro lado da História, ou melhor, é outra história.
António Martins da Cruz, Comunicação in Colóquio “Portugal e a I Guerra Mundial”, 7 de outubro de 2014, Assembleia da República, Lisboa, pp. 9-15 (fonte)